sábado, fevereiro 17, 2024

Os Mestres, Mestras e suas academias

OS MESTRES, MESTRAS E SUAS ACADEMIAS Prof. Severino Vicente da Silva (Biu Vicente) Grande parte das pessoas que conhecemos frequentaram escolas, tendo algumas que, após completar os anos do Ensino Básico, encaminharam-se para o Ensino Médio. Um número menor pôs-se em algum curso superior, licenciaram-se ou alcançaram o bacharelado. Menor número ainda formam os que deram o passo em direção dos cursos de pós-graduação, ficando alguns com a titulação de mestre e, poucos, em relação à população, tornaram-se doutores ou, como se diz em outras plagas, Filósofos Doutores, os PhD. Alguns continuam, alguns até a morte, a fazer pós-doutorados, pesquisando sob a direção de outros, crescendo o número de amigos no processo de globalização. Assim contamos com o crescimento da ciência dos mestres acadêmicos ao longo dos anos, séculos, até. Na tradição brasileira, tradição de um país que cuida pouco da educação formal de seus cidadãos, alguns setores lutam para afirmar-se como sendo o local da primeira escola, como é o caso das escolas fundadas pelos jesuítas Manoel da Nóbrega, em Salvador da Bahia ou José de Anchieta em São Paulo de Piratininga. Maior debate pode ocorrer se falarmos em cursos superiores, pois há a disputa entre Olinda e São Paulo por conta dos Cursos de Leis, postos no papel por Pedro I em 1827. No século XIX, o ‘Curso Jurídico’ de Olinda foi transferido para o Recife, assim como fizeram os governadores e os bispos. Claro que Jesuítas e franciscanos podem nos lembrar que os primeiros cursos especulativos, de teologia, ocorreram em seus espaços da Bahia em 1575 e os franciscanos, logo após a expulsão dos holandeses, criaram seu curso superior de teologia, no convento de Olinda, como diz uma placa comemorativa no salão de entrada. Nem os guias de turismo se dão conta dela. Aprendemos, então, que se procurava formar doutores em especulação divina. Os jesuítas criaram seu colégio em Olinda, ainda em 1560, com as benção de Dona Brites Albuqerque, viúva de Duarte Coelho, seu primeiro dono ou donatário. O mesmo Antônio Vieira que ensinava no colégio da Bahia, veio a dar algumas aulas no Colégio Nossa Senhora das Graças onde, dizem, ainda há o púlpito de onde expunha a excelência da linguagem, do pensamento da Reforma Católica, que ainda pode ser observado no falar de alguns advogados e políticos possuidores de alguma leitura barroca. O mesmo Vieira deve ter ministrado algumas aulas em São Luis do Maranhão, de onde foi expulso pela sua defesa da liberdade dos indígenas, mas silenciava sobre a escravidão a que estavam submetidos os africanos. Desse tempo podemos lembrar que os holandeses, tão louvados hodiernamente, cuidaram de destruir os espaços pedagógicos dos inacianos e dos franciscanos. Mas esses mestres retornaram logo após os comerciantes batavos terem sido derrotados nos morros das Tabocas, dos Guararapes, na várzea de Casa Forte. Também ocorreu o incidente de Tejucupapo, guardado na lembrança dos mestres populares, mas ausente nas crônicas vetustas que contam as aventuras dos flamengos, derrotados pelas mulheres daquele povoado. A expulsão dos holandeses favoreceu o retorno dos jesuítas que, apesar da liberdade religiosa então reinante na Cidade Maurícia, haviam sido expulsos pelo conde humanista do Renascimento, e assim voltou-se à prática de ensino naquele prédio que havia sido devastado pela guerra, agora recuperado. A educação de cunho religioso continuou no Colégio até que o reformador iluminista Sebastião Carvalho, o Marquês do Pombal, expulsou os inacianos do territórios portugueses, em 1759. A casa ficou no abandono, embora a Reforma do Ensino pensada por Pombal, houvesse definido que os Professores Régios tivessem residência onde antes viveram os jesuítas. Então, no final do século XVIII, foi indicado para a Diocese de Olinda Azeredo Coutinho, homem de família rica, mas que se decidiu pela vida de funcionário público e de eclesiástico. Azeredo Coutinho faz parte de uma geração de brasileiros que, de alguma maneira envolveu-se no processo de independência do Brasil, embora fosse ele um dos que não abandonaram a fidelidade à monarquia portuguesa. Escolhido bispo viu-se um homem com projeto político, educacional e econômico, e o primeiro passo foi garantir que o abandonado colégio erguido pelos jesuítas viesse a ser parte da sua diocese como centro formador de mestres. Sua pretensão foi acolhida e surgia a Seminário Nossa Senhora das Graças, o Seminário de Olinda, para o qual ele redigiu o regimento e o currículo, além de assegurar o orçamento necessário para a manutenção do prédio e pagamento dos professores. Dom Azeredo Coutinho teve pouco ou nenhum tempo para o Seminário criado por ele, pois assumiu o governo de Pernambuco, a organização do Santo Ofício e, sendo chamado a Portugal, recebeu outro bispado. Mas o seminário teve mestres, alguns como Azeredo, formados em Coimbra, outros formados pelos carmelitas do Recife ou pelos Oratorianos que mantinham colégio na Madre de Deus e foram as mãos da Reforma Pombalina. Do seminário, fundado pelo bispo Azeredo. Funcionário público conservador sempre dedicado à metrópole, nascera uma vertente da Revolução de 1817. Mas em Pernambuco sempre houve outras academias, outras casas formadoras, outras tradições. Não apenas em Pernambuco, mas em todos os lugares em que a sociedade confina uma parte de sua população na ignorância das coisas necessárias à vida social. O texto que escrevo lembra que neste dia 16 de fevereiro de 1800, foi aberto o Seminário de Olinda e, por coincidência, neste dia 16 de fevereiro de 2024 morreu a Mestra Gil, primeira mulher a assumir o apito de Mestre de Maracatu Rural, também conhecido como Maracatu de Baque Solto ou de Orquestra. Tive a honra de conhecer Givanilda Maria da Silva, ainda como bandeirista do Maracatu Feminino Coração Nazareno, um braço da Associação das Mulheres d Nazaré da Mata – AMUNAM. Quando a acompanhei em seu primeiro desfile como Mestra do Maracatu, improvisando seu versos, ela contou-me que, ouvindo os mestres de Maracatu, sentia que podia fazer versos, orientar o maracatu. Neste trajeto ela conheceu mais de perto o Garganta de Aço de Nazaré, o Mestre Zé Duda, que durante anos mestrou o Maracatu de Baque Solto Estrela de Ouro de Aliança. Trocaram experiências e, depois suas vidas confundiram-se numa grande loa de amor, até 02 de julho de 2023, quando o Mestre Zé Duda foi tirar versos com os Querubins da Corte Celestial. Mestre Gil encantou a Jorge Mautner e a Nelson Jacobina, quando desfilaram nas ruas da cidade mãe dos maracatus de Baque Solto. Mestre Gil, como a maioria das mulheres de sua região, teve negada a escola, aprendeu a ler por teimosia, como a fazer raiva aos donos de usinas que exploram os homens, empobrecendo-os fisicamente e mentalmente, e que ensinavam os cortadores de cana a explorar as suas mulheres. A Mestre Gil, como muitas outras mulheres, rompeu, as barreiras que a sociedade do açúcar amargoroso lhes punha. Assim, quando parte da sociedade que tem acesso ao saber iluminista que tem obscurecido a outra parte celebra um caminho do saber, a morte de Mestre Gil, de quem pouco se sabe, pode ser a continuidade de um caminho para as mulheres da Zona Mata, mulheres cortadoras de cana, exploradas mas que mantêm o espírito livre como o canto dos pássaros. A Mestre Gil, diferentemente do padre Antônio Vieira, não terá seu púlpito guardado e reverenciado, pois o seu púlpito é o Maracatu em andamento rápido, contando e fazendo a história do Brasil. Nosso desejo, a fé dos maracatuzeiros, a fé dos caboclos de lança é que os espíritos do mestre Zé Duda e da Mestra Gil, façam os caboclos celestiais realizarem, ao som dos seus apitos, as mais belas coreografias. Salve todos os Mestres, os Mestres de Todos os saberes. Ouro Preto Olinda, no dia de Santa Juliana.