sexta-feira, fevereiro 23, 2007

CARNAVAL SEM FIM

Escrevi hoje, um texto sobre a Campanha da Fraternidade, mas não pude deixar de colocar para leitura dos que frequentam este espaço, a bela coluna de Pedro Porfírio com o título acima , publicado na Tribuna da Imprensa, RJ 23/02/2007

Carnaval sem fim

"Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança."(William Shakespeare - 1564/1616)

Disseram que o carnaval acabou nas cinzas da quarta-feira. Erraram. O carnaval não acabou na quarta e nem acabará jamais. Como enxerto profundo em nossas vidas, ele apenas muda de cenário. Não vai parar só porque o tamborim aquietou-se. Vive-se neste País, mais do que em qualquer outro, sob o império de uma interminável folia.
Faz muito, seu espectro paira sobre esta sociedade que, sem perceber, foi mesclando realidade e fantasias, como se uma fosse irmã siamesa da outra. Quando começou no sábado, o carnaval já estava incrustado em cada brasileiro - folião ou não. No seu presumível epílogo, passa a ocupar uma gerência no instituto do comportamento humano.
A fantasia de cada um
Não falo do carnaval do Rio de Janeiro, e espetáculo do entretenimento produzido para consumo daqui e d'além mar. Não quero me ater à constatação de que ele está cada vez mais "branco", mais relevante pela quantidade de mulheres bonitas e pelos cuidados cênicos e tecnológicos que seus artífices cultivam.
É isso e não adianta falar de raízes. Uma fantasia de uma ala não sai por menos de dois salários mínimos. Fora a bateria, as baianas e uma ou outra "ala da comunidade" a escola de samba cobra para que você tenha o seu minuto de avenida.
Os chefes de alas já estão profissionalizados. Recebem os desenhos dos figurinos e fazem a arrecadação, que não aparece na contabilidade da "firma". Há deles que têm franquias em três, quatro escolas. E muitos dos seus clientes também, em tendo dinheiro, gostam de sair por tantas quantas for possível. Nalguma chegam ao orgasmo.
Mas esse é o preço do grande espetáculo, que foi transmitido pela televisão para 60 países. Quem vai para a Sapucaí, assim, extrapola o mero "espírito folião". Vai para entrar no grande circo, sem o qual o existencial não experimentaria prazeres compensatórios "interativos", como é "recorrente".
Nesse clima em que realidade e fantasia se alimentam mutuamente, o fenômeno dos grandes camarotes expõe o seu caráter explicitamente comercial. A atriz Susana Vieira, apesar dos 14 anos de casa, não desfilou pela Grande Rio porque, contando com patrocínio da cerveja Itaipava, a escola de Caxias não permitia que ela, ou qualquer outra "celebridade" do seu plantel, freqüentasse o badalado camarote da Brahma.
Isso é parte de uma realidade que sujeita o caráter amador da manifestação carnavalesca a uma estrutura real de interesses que impõe regras rígidas, semelhantes aos profissionais presos por contratos comerciais.
Não falo do tão badalado carnaval da Bahia. Não falo porque dizem que é uma grande festa popular, onde não há a supervalorização de escolas de samba "profissionalizadas". Só não entendo essa história do abadá. Vi pela televisão cambistas vendendo tal indumentária por mais de R$ 1.000,00 (o preço normal seria R$ 800,00). Só pode entrar nos blocos e acompanhar os trios elétricos quem tiver dentro dessa fantasia devidamente autenticada. Logo lá também o popular sai caro.
A grande passeata
O que me tocou, em especial, foi a participação maciça dos pernambucanos no Galo da Madrugada, um bloco sem cordões, registrado no Guiness como o maior do mundo, ao qual se juntaram dois milhões de foliões. Isso significa bem mais do que toda a população de Recife, que é de 1 milhão 450 mil habitantes (43% dos moradores da Região Metropolitana).
Pelas imagens que vi, em alguns pontos, as pessoas simplesmente caminhavam. Mas estavam ali, naquele tumulto, com a mesma disposição dos muçulmanos que vão à Meca nos dias sagrados do Ramadã.
Ao contemplar aquela massa apinhada no centro de Recife, fiz-me uma pergunta despropositada: quantos desses estão desempregados ou ganhando míseros salários? Quantos brigariam por uma escola pública de qualidade ou um sistema de saúde decente? Quantos sairiam de casa para um outro tipo de manifestação, uma passeata de protesto ou simplesmente reivindicativa?
Você dirá que não tem nada a ver, que eu estou questionando um dos poucos momentos de descontração, alegria e "felicidade" dessa multidão. Que se não fosse essa válvula de escape o sofrimento seria maior.Pode ser que você esteja certo e eu, errado. Mas já tirei minhas próprias conclusões. Essa concentração humana na participação em um bloco carnavalesco dessa magnitude é um lenitivo compensatório que transcende os dias de festa.
Isso quer dizer que seus efeitos implosivos são assimilados numa seqüência ininterrupta. Ali, no ambiente de descontração, onde as hierarquias amortecem, onde se imagina o exercício pleno da liberdade, vence-se a batalha perdida ao longo do ano. Perde-se com a rotina fatal, mas essa vitória é que conta.
Há um elemento oposto à manifestação religiosa, que também mobiliza multidões. Neste caso, os homens se reúnem para clamar aos céus, pedir a Deus; naquele, possuem-se da sensação de que estão fazendo o que lhes vêm à cabeça com as próprias mãos, no encontro e no confronto de iguais. Num, tornamo-nos prisioneiros de promessas e esperanças; noutro, do desejo saciado. Ambos remetem ao âmago da nossa fragilidade assumida.
Decididamente, a cada geração, os seres humanos encontram nas pequenas coisas, qualquer coisa, suas grandes paixões. E nelas se bastam.
Curiosamente, por mais individualistas que se sintam como da essência das sociedades refratárias a compromissos coletivos, praticam cada um a anulação de sua individualidade. Submetem-se, antes, à pauta imposta por cada momento, de forma a nunca irem às profundezas de nada.
Eu mesmo, enquanto cronista, padeço dessa condicionante. Queria falar hoje de uma grande torpeza - o que continuam fazendo com os aposentados do Aerus - e, no entanto, estou aqui rendendo-me ao que está na boca de todos.
Tudo para dizer que no País dos sonhos efêmeros o carnaval é um hábito essencial e sem fim. E sem começo. Porque as ilusões compensatórias e as fantasias multicores são ingredientes de nossas almas.

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