terça-feira, janeiro 08, 2008

Cultura Popular na França Moderna a partir da leitura de Robert Darton

Amigos, mais uma vez estou utilizando este espaço para que os alunos possam ter acesso à produção dos seus colegas de classe. Desta feita o tema é a Cultura Popular na França Moderna.






UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA




PAINEL: HISTÓRIA MODERNA II
PROFESSOR: SEVERINO VICENTE

A CULTURA POPULAR DA FRANÇA MODERNA (HISTÓRIAS DE MAMÃE GANSO E O GRANDE MASSACRE DE GATOS): O UNIVERSO MENTAL DOS NÃO ILUMINADOS

BRUNO DIAS, MARIANA MACIEL E THIAGO ALVES





RECIFE, 17 DE DEZEMBRO DE 2007.
Sumário

Introdução........................................................................................................................ 3
A Vida Camponesa.......................................................................................................... 4
Surgimento e análise dos contos...................................................................................... 7
Os contos e a vida cotidiana........................................................................................... 10
Os trabalhadores se Revoltam: O Grande Massacre de Gatos da Rua Saint-Severin.... 17
Apêndice: Livros Infantis Antigos e Esquecidos (Walter Benjamin)............................ 21
Bibliografia..................................................................................................................... 23
Anexos............................................................................................................................ 24

Introdução


Este trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise, sobre o que se convencionou denominar de História das Mentalidades ou História Cultural.
Nossa abordagem se faz através da análise da obra de Robert Darton, que trata do universo cultural da França no Século XVIII em seu livro: O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. Fixamos em dois pontos que retratam segundo o próprio autor o Universo Mental dos Não Iluminados: As histórias contadas pelos camponeses a beira de suas lareiras e o relato de um trabalhador de uma tipografia.
A grande dificuldade em realizar uma obra que trata de uma temática como essa, se dá pela ausência ou quantidade ínfima de documentações, grande quantidade de generalizações e uma série de incertezas. Mas por outro lado, representa uma deliciosa viagem pelo Universo Mental dos Homens, Mulheres e Crianças do Antigo Regime.




A Vida Camponesa

O início da Idade Moderna não apresentou mudanças significativas na ordem social existente, ao nível das aldeias, na França. Encontrava-se no interior camponeses relativamente livres, segundo Robert Darnton, “menos que os pequenos proprietários rurais, que se transformavam em trabalhadores sem terras, na Inglaterra, e mais que os servos, que mergulhavam numa espécie de escravidão, a leste do Elba” [1]. Apesar desta relativa liberdade, os camponeses encontravam-se inseridos em um sistema senhorial que não lhes permitia a possessão de terras suficientes para adquirir sua independência econômica e que lhes retirava qualquer excedente produzido. Viviam em uma situação de subnutrição, alimentando-se de uma espécie de papa composta por pão e água, comendo carne poucas vezes durante o ano (festas ou abate de outono), não se obtendo, muitas vezes, o quilo diário de pão (2.000 calorias) necessário para manterem-se saudáveis, ficando mais suscetíveis a doenças.

Darnton informa que “a população flutuava entre quinze e vinte milhões de pessoas e se expandia até o limite de sua capacidade produtiva, apenas para ser devastada por crises demográficas. Durante quatro séculos – dos primeiros estragos da Peste Negra, em 1347, até o primeiro grande salto de população e produtividade, por volta de 1730 – a sociedade francesa permaneceu aprisionada em instituições rígidas e condições maltusianas” [2]. O senhorialismo e a economia de subsistência eram os responsáveis pela manutenção da situação encontrada nas aldeias e, aliado a estes fatores, estavam às técnicas agrícolas primitivas empregadas pelos camponeses, as quais não permitiam que estes conseguissem maiores produções. A criação de animais não era realizada em escalas maiores pela quantidade reduzida de cereais conseguida pelos camponeses, consequentemente, não se obtinha adubo suficiente para aumentar a produtividade das áreas cultivadas. A produção era realizada em faixas dispersas de terras e em campos abertos, coletivamente, onde se empregava a respiga e a pastagem comum. Além dos campos cultivados, se utilizava terras e florestas comuns para a pastagem, lenha e castanhas ou morangos. Darnton diz que se podia encontrar algum progresso no galinheiro ou no quintal localizado nos lotes das casas, através de iniciativas individuais. “Ali, eles se esforçavam para levantar montões de adubo, cultivar linho para fiar e produzir verduras e frangos para o consumo doméstico e mercados locais” [3].

O quintal era uma importante fonte de sobrevivência para os camponeses, pois era dali que muitas vezes retiravam o sustento das suas famílias após o pagamento dos tributos senhoriais, dízimos, arrendamentos de terrenos e impostos. Além destas dificuldades, existiam ainda os camponeses mais prósperos, que através da influência fraudulenta na cobrança da talha (principal imposto real), endividavam os camponeses, forçados a tomar empréstimos com os mais ricos para cobrir os prejuízos. Estes camponeses mais prósperos eram aqueles com terras suficientes para produção e venda cereais no mercado, com capacidade para criação de rebanhos e contratação de pobres para seu serviço. Segundo Darnton, “Ódio, inveja e conflitos de interesses ferviam na sociedade camponesa. A aldeia não era uma comunidade feliz e harmoniosa” [4]. Como já exposto, a vida na aldeia era uma luta cotidiana pela sobrevivência. Manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes era o principal objetivo. Esta linha definia-se de acordo com o lugar e estabelecia-se dependendo da extensão de terras necessárias para pagar impostos, dízimos, tributos senhoriais e quantidade de grãos necessários para o plantio do próximo ano e alimentação da família.
Na tentativa de contornar as dificuldades, os camponeses trabalhavam nos períodos de escassez tecendo e fiando em suas cabanas, fazendo trabalhos esporádicos e aqueles que encontrassem pelo caminho. Muitos pegavam a estrada na busca de melhores condições, entretanto, acabavam alimentando-se de restos de comida, invadindo galinheiros, roubando roupas, disfarçando-se de mendigos para obter esmolas, dentre outras coisas. Estes andarilhos acabavam encontrando a morte, muitas vezes enfrentando maiores dificuldades, que os camponeses que permaneciam nas aldeias. O índice de mortalidade, pelos problemas explanados anteriormente, é muito elevado entre a população rural da França. Darnton diz que “cerca de 45 por cento dos franceses nascidos no século XVIII morriam antes da idade de dez anos. Poucos dos sobreviventes chegavam à idade adulta antes da morte de, pelos menos, um de seus pais. E poucos pais chegavam ao fim de seus anos férteis, porque a morte os interrompia” [5]. É neste cenário que surge e se difunde o papel da madrasta.

A relação entre os irmãos do primeiro casamento e os nascidos da união do pai com a madrasta era geralmente difícil. O aumento da quantidade de irmãos significava uma divisão maior das terras quando da morte do pai, e esta nova divisão, poderia significar o empobrecimento da próxima geração. Uma maneira de evitar o crescimento da população, e o seu conseqüente empobrecimento, era o casamento tardio. O casamento não ocorria, geralmente, até que se pudesse ocupar uma cabana, raramente tinha-se filhos fora do mesmo ou após os quarenta. Além deste instrumento, um curto período de fertilidade e longos espaços de amamentação ao seio também contribuíram para limitar o tamanho da família. Uma outra prática eficaz era a morte dos bebês e das mulheres na infância ou durante o parto. Alguns bebês eram mortos sufocados por seus pais durante o sono, pois “famílias inteiras se apinhavam em uma ou duas camas e se cercavam de animais domésticos para se manterem aquecidos” [6]. Bulas papais demonstram ser estes acidentes comuns e proíbem os pais de dormirem com filhos que tenham menos de um ano. Além do perigo, a prática de dormir com as crianças, recém-nascidas ou não, demonstra também como estas se tornam espectadores diretos das relações sexuais de seus pais. A infância não era vista como uma fase diferente da vida e, logo após aprenderem a caminhar, muitos filhos já trabalhavam com seus pais como lavradores, criados e aprendizes.

O exposto anteriormente demonstra a vida dos camponeses na França. A luta cotidiana pela sobrevivência, os conflitos entre madrastas e filhos, a convivência com exploradores e a morte e a falta de perspectiva de melhoras. Apesar das dificuldades, pois se estará remetendo a mentalidade dos camponeses franceses dos séculos XVII e XVIII, fazendo-se generalizações, discutiremos como os contos da Mamãe Ganso surgiram em meio a uma condição humana desagradável, grosseira e curta e refletem esta realidade.




Surgimento e Análise dos Contos

Fazer o estudo da mentalidade destes camponeses, para Darnton, é falar do “universo dos não iluminados durante o Iluminismo” [7]. Para remeter ao pensamento dos habitantes da vida rural francesa se analisarão alguns contos cantados por eles, em torno das lareiras, ao longo dos invernos do século XVIII. Uma característica de relevância destes contos é a sua tradição oral. Muitos deles são passados de uma geração para outra, sofrendo modificações ao longo dos anos, entretanto, conservam na grande maioria sua essência. Um conto bastante difundido e cantado é o de Chapeuzinho Vermelho, o qual sofreu diversas análises, na tentativa de compreensão da mentalidade dos camponeses, inclusive de dois importantes psicanalistas, Erich Fromm e Bruno Bettelheim.

Fromm analisa um Chapeuzinho Vermelho diferente do conto primitivo camponês dos séculos XVII e XVIII, o qual recebeu diversos elementos não constantes no original, que foram enquadrados nos fundamentos da psicanálise. A sua interpretação busca o inconsciente coletivo constante no conto, que para ele, trata sobre a confrontação de uma adolescente com a sexualidade adulta. Por meio da decodificação dos símbolos existentes no conto, Fromm conseguiu analisá-lo. Os simbolismos encontrados por ele no conto para fundamentar sua análise são o chapeuzinho vermelho, simbolizando a menstruação, e a garrafa de vinho, que é um símbolo de virgindade. Os avisos dados pela mãe de chapeuzinho, para que não se desviasse do caminho, significariam o cuidado que deveria ter a menina para não quebrar a garrafa e perder seu líquido, ou seja, “um alerta contra o perigo do sexo e de perder a virgindade” [8]. O lobo representaria o macho sedento por sexo e astucioso, que procura desviar a menina do caminho da virtude. O ato sexual um “ato canibalista em que o macho devora a fêmea” [9]. Neste conto, para Fromm, estaria sendo narrado um conflito macho-fêmea, no qual as mulheres seriam vitoriosas. O lobo, pela tentativa de quebra de um tabu sexual, teria sua barriga enchida de pedras, que representariam à esterilidade e o castigo pela violação cometida.

A análise realizada por Bettelheim não difere muito da de Fromm. Para ele, a peça mais importante do conto seria seu final, pois “tendo um final feliz, os contos populares permitem às crianças enfrentarem seus desejos e medos inconscientes e emergiram incólumes, o id subjugado e o ego triunfante” [10]. Bettelheim aponta o id como o vilão de Chapeuzinho vermelho e diz que é o princípio do prazer que a faz desviar-se. No seu final o id é derrotado e todos vivem felizes para sempre. Darnton informa que a análise tanto de Fromm como de Bettelheim é errônea, pois o primeiro tem um entendimento dos contos sem levar em consideração suas dimensões históricas, enquanto o segundo, trata do mesmo como “pacientes no divã, numa contemporaneidade atemporal” [11]. Darnton aponta a questão da versão abordada pelos psicanalistas como principal dificuldade encontrada pelos mesmos para análise do conto. Como já citado, os contos passados para as próximas gerações podiam sofrer algumas modificações. Charles Perrault, escritor francês nascido em Paris, compilou vários contos populares franceses e os publicou num livro intitulado “Contos de Mamãe Ganso”, os quais foram adaptados para “atender ao gosto dos sofisticados freqüentadores dos salões, précieuses, e cortesãos” [12]. Perrault provavelmente, segundo Darnton, teve na babá de seu filho a principal fonte de acesso a esta tradição oral do povo.

Além do problema da fonte, a já citada dificuldade de contextualização histórica dos contos, identificada na análise dos psicanalistas, não permite que se remonte de maneira segura a mentalidade dos camponeses franceses do século XVII e XVIII. Os simbolismos identificados por Fromm e Bettelheim nas suas fontes, comparados com os contos primitivos, ratificam o pensamento de Darnton no que diz respeito à abordagem de temas considerados tabus, como o sexo. Nos contos primitivos muito explicitamente fala-se sobre o sexo e a violência, não se utilizando eufemismos para a abordagem destes temas. No próprio conto primitivo de Chapeuzinho Vermelho encontra-se referência a cenas de violência, assim como em Cinderela, aborda-se o sexo notoriamente. A violência era vivida cotidianamente pelos camponeses nas aldeias, motins e castigos impostos pelos senhores eram algumas de suas representações. O sexo era conhecido pelas crianças desde cedo, como já exposto anteriormente, pois dividiam a cama com seus pais e irmãos, tornando-se testemunhas oculares dos atos sexuais. É por meio da abordagem de temas corriqueiros que Darnton faz a ligação entre os contos populares e a mentalidade dos camponeses. Utilizando a antropologia e o folclore, ele tenta remontar ao cotidiano do meio rural francês dos séculos XVII e XVIII.
Nestas disciplinas encontram-se técnicas que conseguem analisar o modo como o narrador correlaciona a história a sua realidade e adapta o conto ao seu meio. Os contos estudados são recolhidos da tradição oral francesa e compilados em impressos, que organizados e comparados, demonstram como a essência dos contos não se perde, apenas adapta-se ao tempo e espaço do seu narrador. Para Darnton, apesar destes contos não poderem ser datados com a precisão de um documento histórico, eles são “um dos poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses, nos tempos do Antigo Regime” [13]. Por meio do livro de Noel Du Fail, Propos Rustiques, de 1547, pode-se ter uma idéia de como os contos surgiram nas tradições camponesas, pois este revela, segundo Darnton, uma importante instituição francesa, a veillée. Nesta reunião em torno da lareira, à noite, eram contadas histórias que, quer tivessem o intuito de divertir, quer objetivassem assustar as crianças, refletiriam a cultura popular francesa. Não se tem certeza da exatidão das histórias relatadas nos livros, que foram analisados posteriormente, nem se refletiam de fato a tradição oral, no entanto, a quantidade de contos encontrados e comparados demonstra que se pode, apesar das generalizações, estudá-los na tentativa de compreender um pouco a realidade dos habitantes rurais da França Moderna.




Os Contos e a vida cotidiana

Algumas histórias da Mamãe Ganso de Perrault como “Gato de Botas”, “Pequeno Polegar”, “Cinderela” e “Os desejos ridículos”, podem ser comparados com alguns contos camponeses, revelando o universo em que essas pessoas viviam.
Com relação ao problema da herança, era costume na França moderna, tanto entre os camponeses quanto entre a nobreza, que, com a morte do pai, o patrimônio fosse deixado para o filho mais velho, como uma maneira de evitar a fragmentação deste patrimônio. No “Gato de Botas”, segundo Darnton:
Um moleiro pobre morre, deixando o moinho para seu filho mais velho, um asno para o segundo e apenas um gato para o terceiro. “Nem um tabelião nem um advogado foram chamados”, observa Perrault. “Eles teriam devorado o pobre patrimônio”. (...) O filho do moleiro, contudo, herda um gato que é um gênio para intriga doméstica. Em toda parte, em torno dele, esse gato cartesiano vê vaidade, estupidez e apetite insatisfeito; ele explora tudo com uma série de truques que resultaram num casamento rico para seu dono e uma bela propriedade para si mesmo – embora, nas versões pré-Perrault, o dono, no fim, logre o gato – que, na verdade, é uma raposa e não usa botas.[14]

Já em um outro conto da tradição oral, “La Renarde” o assunto é tratado de maneira semelhante:
Era uma vez dois irmãos que receberam as heranças que o pai deixara para eles. O mais velho, Joseph, ficou com a fazenda. O mais novo, Baptiste, recebeu apenas um punhado de moedas; e, como tinha cinco filhos e muito pouco com que alimenta-los, caiu na indigência. Desesperado, Baptiste implora trigo ao seu irmão. Joseph lhe diz para despir seus farrapos, tomar chuva nu e rolar no celeiro. Ele pode ficar com todo trigo que se grudar a seu corpo. Baptiste submete-se a esse exercício de amor fraterno, mas não consegue pegar alimento suficiente para manter sua família viva e então sai pela estrada. Finalmente, encontra-se com uma fada bondosa, La Renarde, que o ajuda a decifrar uma série de enigmas que conduzem a um pote de ouro enterrado e à realização do sonho de um camponês – uma casa, campos, pastagens bosques: E seus filhos comiam um pedaço de bolo todos os dias.

Este último conto demonstra, além do problema da herança que foi comparado com o conto do “Gato de Botas”, o problema da alimentação, os anseios da população camponesa da época, que serão tratados posteriormente. Isto é demonstrado através da busca de Baptiste por alimentar os seus filhos e também na realização dos desejos pela fada, que lhe deu a possibilidade de dar “um pedaço de bolo todos os dias” aos seus filhos.
Outra questão fundamental que pode ser analisada através dos contos é a problemática do grande aumento populacional e a falta de alimentação para o povo, ou seja, o universo malthusiano[15]. O “Pequeno Polegar” de Perrault retrata bem os problemas da época em que foi escrito, em meados de 1690.
Era uma vez um lenhador e sua mulher, que tinham sete filhos, todos meninos... Eram muito pobres e seus sete filhos se tornaram um pesado fardo, porque nenhum tinha idade suficiente para se sustentar... Chegou um ano muito difícil e a fome era tão grande que essa pobre gente decidiu livrar-se dos filhos. [16]

Segundo Darnton, este período foi o auge da pior crise demográfica do século XVII, onde a fome e a peste matavam grande parte da população do norte da França. Os pobres comiam carniça atirada nas ruas, cadáveres eram encontrados com capim na boca e as mães expunham os bebês que não podiam alimentar, para que eles adoecessem e morressem. Diz ainda que os pais do Pequeno Polegar, ao abandonarem seus filhos na floresta, tentavam enfrentar o problema da sobrevivência nesta época de desastre demográfico, que perturbou os camponeses nos séculos XVII e XVIII.
Além deste conto, outras versões camponesas com o mesmo foco que este, falavam de infanticídios e maus-tratos infligidos a crianças. Em um conto intitulado “Aprendiz de feiticeiro”, é narrada a história de um bebê que é vendido ao diabo, em troca de uma dispensa cheia que poderia durar doze anos. Esta questão da alimentação, do “comer ou não comer”, como diz Darnton, é tratada em inúmeros contos, muitas vezes aliado ao tema da madrasta má, que foram figuras que se tornaram importantes na sociedade das aldeias desta fase. Existe uma versão camponesa que trata sobre estes temas, e que se assemelha à “Cinderela” de Perrault, que é “La Petite Annette”( A Pequena Annette):
A madrasta má dá à pobre Annette apenas um pedaço de pão por dia e faz com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irmãs postiças vagueiam pela casa e jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette está a ponto de morrer de inanição, quando a Virgem Maria aparece e lhe dá uma varinha mágica, que produz um magnífico banquete, todas as vezes em que Annette toca com ela uma ovelha negra. Não demora muito e a menina está mais gorducha que suas irmãs postiças. Mas sua beleza recém adquirida (...) desperta as suspeitas da madrasta. Através de um artifício, a madrasta descobre a ovelha mágica, mata-a e serve seu fígado a Annette. Annette consegue, secretamente, enterrar o fígado e ele se transforma numa árvore, tão alta que ninguém consegue colher suas frutas, a não ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre que se aproxima. Um príncipe de passagem (que é tão guloso como todos os demais no país) deseja tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando casar uma de suas filhas, a madrasta constrói uma grande escada. Mas, quando vai experimentá-la, cai e quebra o pescoço. Annette, então, colhe as frutas, casa-se com o príncipe e vive feliz para sempre[17].

Este tema da busca incessante por comida também está presente em “Os desejos ridículos”:
Um pobre lenhador tem a promessa de ver satisfeitos três desejos, quaisquer que sejam, como recompensa por uma boa ação. Enquanto ele rumina, seu apetite o domina; e deseja uma salsicha. Depois que ela aparece em seu prato, sua mulher, uma rabugenta insuportável ,repreende-o com tanta violência pelo desperdício do desejo que ele deseja que a salsicha cresça no nariz dela. Depois, diante de uma esposa desfigurada, deseja que ela volte ao seu estado normal; e eles retornam à sua miserável existência anterior.[18]

Neste conto também observa-se, novamente, a idéia de realização de desejos, onde o indivíduo, por meio de uma boa ação, pode ter seus desejos satisfeitos (geralmente três). Estes desejos estão, em grande parte das vezes, relacionados com a alimentação e meios de subsistência, pois estes eram os maiores problemas destes camponeses da época. Darnton diz que “na maioria dos contos, a satisfação dos desejos se torna um programa para a sobrevivência, não uma fantasia ou uma fuga” [19] A figura que realiza os desejos aparece normalmente como uma pessoa miserável, que pede ajuda e, a partir da boa ação realizada, se transforma em uma fada, um santo, ou algo do gênero, e concede o direito a realização de três pedidos.
Através de contos como estes, que retratam a realidade da vida camponesa de boa parte da Idade Moderna, podemos observar que eles estão inseridos em um cenário dual da vida dessas pessoas. Por um lado se tem a casa e a aldeia, e por outro a estrada aberta. Nas casas e aldeias podemos ver elementos como a constituição da família, as madrastas, o casamento, o trabalho familiar e a moral; já nas estradas, não retratados nos contos os perigos que elas oferecem e a saída de pessoas que fugiam da falta de terra, trabalho e comida das aldeias onde moravam e iam em busca que melhores condições de sobrevivência.
Com relação ao trabalho, ele era realizado por toda a família, pois este era o único modo de sobrevivência dos camponeses. O trabalho em conjunto gerava uma unidade econômica. A condenação do trabalho infantil era inconcebível, assim que a criança começava a andar adquiria alguma forma de trabalho, havendo indignação por parte dos pais quando um filho não queria trabalhar. Assim, “todos enfrentavam um trabalho interminável, sem limites, da mais tenra infância até o dia da morte”[20]. Em “Les Trois Fileuses”
Um pai decide livrar-se de sua filha porque “ela comia mas não trabalhava”. Convence o rei de que ela pode tecer sete fusées (100,8 metros) de linho por noite (...) O rei ordena à moça que ela realize feitos prodigiosos na fiação, prometendo casar-se com ela, se conseguir. Três fiandeiras mágicas, cada uma mais deformada que a outra, realizam as tarefas para ela e, em troca, pedem apenas para serem convidadas para o casamento. Quando aparecem, o rei pergunta qual a causa de suas deformidades. Excesso de trabalho, respondem; e advertem-no de que sua esposa ficará igualmente horrenda, se ele permitir que continue tecendo. Assim, a moça espaça da escravidão, o pai livra-se de uma glutona e os pobres levam a melhor sobre os riscos.[21]

O casamento, ao contrário do que se pode pensar, não trazia nenhum alívio. Além de a mulher precisar de um dote para se casar, o matrimônio trazia uma carga adicional de trabalho, submetendo as mulheres ao trabalho domiciliar, além do trabalho para a família e a fazenda. Darnton diz que algumas histórias apresentam quadros hiperbólicos do trabalho das esposas, mostrando-as puxando água de um poço com os cabelos ou limpando fogões com seus seios nus. Ainda existem os contos que relatam pais que casavam suas filhas com animais (lobo, raposa, lebre, porco), assim como a transformação destes animais em príncipes. Em versões irlandesas e do norte da Europa, se fazia necessário transformar estes animais em humanos. Mas nas versões francesas, as esposas viviam, de fato, com animais como maridos, sendo relatado que quando a mãe vem de visita, servem á mesa carneiro caçado pelo lobo, peru pego pela raposa, repolho roubado pela lebre e sujeira do porco.

Estes contos populares não de destinavam a dar lições de moral, mas primordialmente, demonstrar, com elementos de realismo e hipérboles, as dificuldades e perigos do mundo em que viviam. Ao contrário do que se pensa geralmente, a maioria deles não estava destinado às crianças, porém fazem advertências, sugerindo que todos devam agir com cautela. Além disso, alguns mostram que é correto agir com cautela, pois são inúmeros os perigos da vida, principalmente quando se está nas estradas, fora das aldeias. Outros demonstram como é importante a bondade e a generosidade, quando, por meio de uma boa ação, mendigas se transformam em fadas bondosas que realizam desejos.
Porém, ainda existem aqueles que mostram que o mundo em que vivem é arbitrário e que algumas coisas acontecem casualmente. Um exemplo disto é conto “Les Deux Bossus”:
Um corcunda depara-se com um bando de feiticeiras danando e cantando: “Segunda, Terça e Quarta-feira, Segunda Terça e Quarta-feira”. Ele entra no grupo e acrescenta “e Quinta-feira” à canção delas. Encantadas com a inovação, elas o recompensam, eliminando sua deformidade. Um segundo corcunda tenta o mesmo truque, acrescentando “e Sexta-feira”. “Isto não combina”, diz uma das feiticeiras. “De jeito nenhum”, comenta a outra. Elas o castigam, acrescentando-lhe a corcunda do primeiro. Duplamente deformado, ele não pode suportar as zombarias da vila e morre em menos de ano.[22]

É importante ressaltar que os contos se tornam comoventes pela natureza inescrutável e inexorável de desastre, não por causa dos finais felizes. Esta característica de ter frequentemente um final feliz é adquirida depois do século XVIII. Nestes contos primitivos franceses nem sempre o com comportamento e a moral fazem com que se atinja o sucesso. Darnton salienta que, em alguns casos, o herói é auxiliado magicamente por causa de uma boa ação, mas só consegue a princesa usando a inteligência. E, mesmo assim, às vezes tem que realizar atos antiéticos para poder ficar com ela. Um exemplo disto existe o conto de “Le Fidèle Serviteur”, onde o herói só consegue fugir com a princesa se recusando a ajudar um mendigo que se afogava num lago. Sendo assim, estes contos demonstram que o mais importante é viver em uma desconfiança básica, do que manter sempre a virtude para ser recompensado.
A vida nas aldeias também era cheia de desconfianças, pois os visinhos eram geralmente hostis, tentar roubar suas coisas ou até serem feiticeiras. É necessário tomar muito cuidado caso se adquira rapidamente riqueza, pois os vizinhos podem delatá-lo como ladrão ou então tentar roubar para si seus pertences. Para retratar este universo de insegurança, o conto “La Poupée” diz que:
Uma órfã simplória deixa de observar estas regras básicas quando recebe uma boneca mágica, que evacua ouro, todas às vezes em que ela diz: “Caga, caga, minha bonequinha de trapos”. Não demora e ela compra várias galinhas e uma vaca, e convida os vizinhos para visitá-la. Um deles finge adormecer junto ao fogo e foge com a boneca, logo que a menina vai para a cama. Mas, quando ele diz as palavras mágicas, ela evacua fezes de verdade, sujando-o todo. Então, ele atira na pilha de esterco. Depois, um dia, quando ele próprio está evacuando, ela se ergue e o morde. Ele não consegue arranca-la de seu ‘derrière’, até que a menina chega, recupera sua propriedade e vive desconfiada para sempre.

Por fim, é necessário observar que não existia distinção entre estes contos para adultos ou para crianças. Estes eram destinados para ambos, até mesmo os que tratavam sobre assuntos relacionados à sexualidade. “Chapeuzinho Vermelho”, como já foi exposto, foi interpretado posteriormente como um conto voltado para crianças, repleto de significados, tratando sobre temas como a menstruação e a virgindade. Mas é sabido que as versões primitivas deste conto não continham os elementos que possibilitaram estas interpretações. Além disso, na época em que estes contos surgiram, ainda da tradição oral, estes assuntos não eram tidos como tabu. Muito pelo contrário, as relações entre os sexos eram coisas normais, vividas no cotidiano de adultos e crianças. Sobre este assunto, Norbert Elias, em sua obra O Processo Civilizador[23] , faz uma análise muito relevante. Ele diz que este sentimento de vergonha que cerca as relações sexuais humanas aumentou e mudou muito no processo de civilização, sendo demonstrando claramente na dificuldade que os adultos possuem, mais recentemente, em falar com crianças sobre essas relações.
Este padrão de vergonha que permeia esses assuntos se torna predominante apenas nos séculos XIX e XX. Logicamente que na sociedade aristocrática de corte, a vida sexual era muito mais escondida do que na medieval, mas entre as classes mais pobres, os camponeses, onde estes contos surgiam, o assunto da sexualidade ainda era explicito. Elias diz ainda “que só aos poucos, e mais tarde, é que uma associação mais forte de comportamento, se espraia mais ou menos uniformemente por toda a sociedade”.[24] Apenas assim, depois que aumenta a distância entre os adultos e as crianças, é que a elucidação de dúvidas sobre as questões sexuais se torna um grave problema. Mas, entre os camponeses do período em que estamos tratando, séculos XVII e XVIII, não se fazia necessário a criação de contos para esclarecer dúvidas sobre assuntos relacionados ao sexo, pois estes eram tratados com total naturalidade.




Os trabalhadores se Revoltam: O Grande Massacre de Gatos da Rua Saint-Severin.

Como é possível para nós homens do século XXI entender uma prática comum na Europa do Século XVIII que mistura atos de selvageria, barbárie, tortura de animais, hilaridade, comicidade e escárnio? Ora, certamente definiríamos uma prática de massacrar pobres animais indefesos (gatos) com os adjetivos usados anteriormente e uma dezena de outros. Mas entender essa prática, além do prazer extraído de tal atitude, requer se libertar dessa visão “moderna” (atual) e se voltar à época Moderna (século XVIII).
Como base para análise, usamos a narrativa de Nicolas Contant, que consta no livro de Darton, na qual ele (um operário de uma tipografia francesa) conta como era sofrida a vida desses trabalhadores (aprendizes, assalariados) e por outro lado, como era tranqüila a vida dos mestres (burgueses). Relata as duras condições de trabalho, a situação de exploração dos aprendizes, o grande ritmo de rotatividade na função, a contratação de trabalhadores de aluguel em detrimento dos oficiais assalariados: “Contant fez seu aprendizado e escreveu suas memórias em tempos difíceis para os tipógrafos assalariados, quando os homens da oficina da Rua Saint-Severin estavam ameaçados de serem eliminados e tragados pelas camadas inferiores”. [25]
Mas por que então massacrar os gatos? Contant entra nesse ponto quando se lembra que os burgueses adoravam os gatos, tinham um tratamento melhor que os homens da oficina, comiam melhor, dormiam melhor e ainda estavam próximos do burguês. Isso sem contar que os gatos a noite não deixavam os pobres aprendizes (Jerome e Lèveillé) dormirem, passavam a noite toda nos telhados parecendo seres endemoniados. Para resolver tal problema, Lèveillé resolve imitar o som que os gatos produziam todas as noites sobre o telhado do burguês, assim este, temendo alguma feitiçaria ordenou que eles se livrassem dos gatos. Assim, a senhora, esposa do patrão, pede que tomem cuidado para não assustar sua gatinha de estimação La Grise (A cinzenta). A partir daí tem inicio o Massacre, no qual a primeira vítima teria sido La Grise.
Os homens da oficina passam a perseguir, bater e prender todos os gatos da rua. No final realizam um julgamento e condenam os gatos já moribundos. Nesse ínterim chegam a Senhora e o patrão, ela se espanta ao perceber que mataram sua gatinha, os trabalhadores obviamente negam tal ato. Já o burguês não quer saber da gata, quer saber o porquê da bagunça em horário de serviço. Sua esposa lhe coloca a par da situação e ambos saem humilhados e sem poder punir os trabalhadores que passam a relembrar o episódio e se esbaldarem em risadas sempre que se cansam de trabalhar.
A primeira resposta para tal evento seria a dada ao patrão pelos trabalhadores, por conta dos maus tratos e condições injustas de trabalho. Essa seria a perspectiva mais lógica e evidente desse acontecimento, um protesto, uma revolta. Mas não é a única explicação. Tanto que continuamos sem entender o teor da piada feita pelos trabalhadores: Qual a graça em torturar gatos?
Para explicar essa relação com os gatos é preciso analisar o simbolismo dos rituais populares, os homens do Antigo Regime possuíam duas datas em seu calendário bastante significativas: O Carnaval e a Quaresma: “Um período de folia seguido de outro de abstinência”[26]. O Carnaval representava a libertação das regras de comportamento e a critica à sociedade.
O Carnaval era um período de crítica, para os grupos jovens, particularmente os aprendizes, que se organizavam em “abadias”, dirigidas por um pretenso abade, ou um rei, e faziam charivaris ou passeatas burlescas, com música grosseira, cujo objetivo era humilhar maridos enganados, maridos espancados pelas mulheres, mulheres casadas com homens mais jovens ou qualquer um que personificasse uma infração das normas tradicionais. Carnaval era a temporada da hilaridade, da sexualidade, e os jovens se esbaldavam – um período em que a juventude testava as fronteiras sociais, através de irrupções limitadas de desordem, antes de se ver outra vez assimilada pelo universo de ordem, submissão e seriedade da quaresma [27].


Nesse tipo de festividade os gatos tinham um papel especial (eram massacrados enquanto as pessoas se divertiam). Na festividade que representa o Solstício de Verão, a festa de São João, os gatos também estavam presentes, em diversas partes da Europa era comum a prática de barbaridades com os gatos, sempre associadas a fogueiras e incinerações de gatos vivos.
O autor também coloca o forte simbolismo que o gato traz, desde os antigos egípcios, que tinham um grande respeito por eles. Sentimos uma inteligência quase humana por trás dos olhos de um gato. E, às vezes, confundimos o uivo de um gato, à noite, com um grito arrancado de alguma parte profunda, visceral, da natureza animal do homem [28]. Darton também relata a carga simbólica que alguns animais trazem para certas culturas, como tabus (judeus que não comem carne de porco) ou os ingleses que xingam usando o termo: son of a bicth (filho de uma cadela ou filho da puta). Alguns animais se prestam a xingamentos, outros para se pensar e alguns para rituais, neste caso o principal seria o gato. Não se faz uma pândega com uma vaca. Faz-se com um gato [29].
Torturar animais era uma prática comum. Assim como jogar futebol. Que mal há em jogar futebol? Para esses europeus que massacravam os animais não havia mal algum em fazer isso. Claro, no caso especial dos gatos, existe um forte valor ritualístico nisto, mas em geral era uma prática de diversão, uma pândega. Tanto que era um tema de certa forma comum na literatura (Don Quixote, Germinal, Gargântua e Pantagruel) descrevem cenas em que há referências a torturas de gatos. Nada havia de incomum na matança ritual de gatos [30].
Mas finalmente: Qual o valor simbólico dos gatos para essa sociedade? Para responder a essa questão Darton se utiliza do folclore, desde a Idade Média, baseado nestas tradições parte para uma generalização, percebe a aparição de alguns temas recorrentes. Assim, para os gatos são atribuídos valores simbólicos (feitiçaria, medicina, identificação com o dono, sexualidade). Dos quais destaco alguns exemplos: Os gatos sugeririam feitiçaria, cruzar com um deles era um mau sinal, os brancos eram tão satânicos quanto os pretos, a melhor forma de quebrar essa ligação era aleijando o gato. Eram ingredientes básicos em todo tipo de medicina popular, para curar uma queda forte bastava chupar o sangue de uma cauda amputada de um gato, assim como a pneumonia se curava bebendo o sangue da orelha do felino e para as cólicas bastava misturar ao vinho os excrementos do animal. Há também uma forte ligação do gato com a casa e o dono, nos vários contos populares percebe-se isso: “O gato de Botas” e crendices do tipo: se o gato abandona a casa era um mau sinal, um gato deitado numa cama de um agonizante representava o próprio demônio esperando para levar sua alma para o inferno. E claro não poderia faltar a identificação do gato com a sexualidade (tratar bem um gato significava sucesso com as mulheres, pisar no rabo de um atrasava o casamento, o próprio termo (le chat, la chatte, le minet – pussy em ingês) representava o órgão genital feminino, além de inúmeros provérbios: amando como uma gata, a noite todos os gatos são pardos, e isso sem mencionar a idéia do ritual onomatopaico da cópula felina, que no imaginário popular podia ser entendido como uma orgia satânica, um desafio dos gatos ou um diálogo dependendo da criatividade de cada um [31].
Assim, percebemos como tal carga simbólica poderia ter sido facilmente absorvida pelos trabalhadores da Rua Saint-Severin, assim como pelos homens de modo geral.
Agora é possível analisar a narrativa de Contant de forma mais rica, que a simples vingança contra as injustiças do patrão. Na narrativa aparece a questão da feitiçaria, seria uma boa justificativa para aleijar os gatos (que realizavam sabás à noite) explorando a superstição e religiosidade hipócrita do patrão. Mais do que isso, ao matarem a gata da patroa acusavam-na simbolicamente de feitiçaria.
O tema do charivari também se mostra presente, pois, muito embora não haja uma referência clara no texto acredita-se que a patroa levava uma vida de devassidão com o confessor e, portanto o patrão seria um simples corno. Dessa, forma os trabalhadores ao se rebelarem e matarem os gatos faziam uma verdadeira folia de Carnaval e ainda zombavam da suposta traição do burguês. Além disso, como nos charivaris, no final da festa havia o julgamento, em que os gatos forma julgados, mas simbolicamente era o patrão que estava sendo julgado in absentia, usando o símbolo para deixarem transparecer o que queria dizer, sem serem suficientemente explícita para justificarem a retaliação [32]. Por isso, escolheram começar o massacre com La Grise, pois de acordo com o anedotário felino, matar um gato era ferir a própria casa e consequentemente o próprio dono [33].
Como já foi dito simbolicamente o gato representava a sexualidade e no massacre esse tema não passou despercebido na análise de Datton. O sexo, bem como, a violência, uma combinação perfeita para atacar a patroa [34]. Os trabalhadores ao matarem a gata, atingiam a patroa:
O texto a descrevia como lasciva e “apaixonada pelos gatos”, como se ela fosse uma gata no cio, durante um sabá selvagem de gatos, com miados, matanças e estupro. Uma referencia explicita ao estupro violaria as convenções, que, em geral erma observadas na escrita do século XVIII. Na verdade o simbolismo só funcionaria se permanecesse velado – suficientemente ambivalente para lograr o patrão e aguçado o bastante para atingir vitalmente a patroa [35].

A grande piada enfim, teria sido o estupro simbólico da patroa, que ao perceber a situação se sentiu humilhada e impotente para retaliar os trabalhadores e o mais engraçado foi humilhar o patrão, pois, violando sua mulher, seu maior tesouro, o faziam de idiota e ainda saiam ilesos. Ele obtuso, não se dá conta de tudo isso e brandindo sua voz rolfenha irrita-se com a folia e a ausência de trabalho. A mulher lhe explica que fora atacada sexualmente e que os trabalhadores gostariam de matá-lo, saem de cena humilhados e derrotados [36]. Ele como corno, foi o ultimo a entender a piada. Essa seria a grande hilaridade do massacre dos gatos, violar as profanas da casa burguesa e sair impune. Tal qual num charivari: folia, desordem, inversão e gozação (com o chifre do patrão obtuso).

A piada funcionou muito bem por que os funcionários jogaram, muito habilmente, com um repertório de cerimônias e símbolos. Os gatos adequavam-se perfeitamente a seus objetivos. Quebrando a espinha de la grise, chamavam a mulher do patrão de feiticeira e prostituta e, ao mesmo tempo, transformavam o patrão em corno e tolo. Era um insulto metonímico, feito através de ações, e não de palavras e atingiu seu objetivo porque os gatos ocupavam um lugar privilegiado no estilo de vida burguês. Ter bichos de estimação era tão estranho aos operários como, para os burgueses, torturar animais. Aprisionados entre sensibilidades incompatíveis, os gatos receberam o pior de ambos os universos [37].

Em ultima análise, o principal elemento do Massacre dos gatos seria a risada.






Apêndice: Livros Infantis Antigos e Esquecidos (Walter Benjamin)

Walter Benjamin faz uma análise dos livros infantis a partir da coleção de um bibliófilo Karl Hobrecker. Benjamin inicia suas reflexões com o seguinte questionamento: O que leva alguém a colecionar livros? E sendo infantis então. Talvez, uma paixão, a solidão ou mesmo uma boa lembrança de um primeiro livro de infância.
O que mais chama a atenção é a análise da constituição dessas histórias segundo Benjamin:
Segundo Hobrecker, o livro infantil alemão nasceu com o Iluminismo. Era na pedagogia que os filantropos punham à prova o seu grande programa de remodelação da humanidade. Se o homem é por natureza piedoso, bom e sociável, deve ser possível fazer da criança, ente natural por excelência, um ser supremamente piedoso, bom e sociável. E como em todas as pedagogias teoricamente fundamentadas a técnicas da influência pelos fatos só é descoberta mais tarde e a educação começa com as admoestações problemáticas, assim também os livros infantis em suas primeira décadas é edificante e moralista, e constitui uma simples variante deísta do catecismo e da exegese [38].

Essa visão é criticada por Hobrecker, que a coloca num grau de preconceito que enxerga a criança como um ser diferente de nós adultos. A criança era capaz de criar seu próprio universo a partir de uma história infantil. Nada é mais ocioso que a tentativa febril de produzir objetos – material ilustrativo, brinquedos ou livros – supostamente apropriados às crianças [39].
Ainda nessa análise, prossegue ao elucidar que por mais que os contos de fadas se esmerem em produzir um saber moralista e um conteúdo reflexivo, as crianças estavam mais interessadas em animais falando como gente do que nesses ensinamentos, pois ela a partir dos vários fragmentos do Mundo monta sua própria realidade. Assim: A literatura especificamente destinada aos jovens começou como um grande fiasco [40].
Mesmo havendo essas considerações o que interessa nos livros infantis, é como as crianças interagem com ele, de forma livre e não presa a um paradigma Iluminista. E como os adultos podem também re-interagir com essas obras que marcaram sua infância e agora os alegra de novo. Capazes de alegrar os adultos e estimular as crianças de hoje [41]. E conclui: A alegria do colecionador é toldada por uma única sombra: o medo de que os preços se elevem demasiadamente. Esse medo é compensado pela esperança de que um ou outro volume destinado à destruição possa ter sido salvo graças a essa obra [42].









Bibliografia:

· BENJAMIN, Walter. (1987). Magia e Técnica, Arte e Política.
3. ed. Brasiliense: São Paulo.
· DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros
episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro.
· ELIAS, Norbert. (1994). O Processo Civilizador: Uma História dos
Costumes. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro.
· FROMM, Erich. (1983). A Linguagem Esquecida: Uma Introdução ao
entendimento dos sonhos, conto de fadas e mito.Guanabara Koogan: Rio








Anexos

Chapeuzinho Vermelho

(Conto extraído de A Linguagem Esquecida: Uma Introdução ao entendimento dos sonhos, conto de fadas e mito (Rio de Janeiro, 1983) de Erich Fromm.)

Era uma vez uma garota amada por todos que a olhavam, mas sobretudo pela avó, e não havia nada que esta não fizesse pela menina. Certa feita, deu-lhe um chapeuzinho de veludo vermelho, que ficou tão bem nela a ponto dela não querer mais usar outro qualquer; por isso, passou a ser chamada de “Chapeuzinho Vermelho”.
Um dia, a mãe lhe disse: “Vem cá, Chapeuzinho Vermelho, aqui você tem um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho; leva-os para a sua avó, ela está doente e fraca, isso lhe fará bem. Vá andando antes de ficar muito quente, e no caminho anda direitinho e com cuidado sem se desviar da trilha, para não cair e quebrar a garrafa, pois aí sua avó ficará sem nada, e, quando entrar no quarto dela, não se esqueça de dizer “Bom dia”, e não fique olhando em todos os cantos antes de vaze-lo.”
“Terei todo o cuidado”, disse Chapeuzinho Vermelho à mãe, e estendeu a mão.
A avó vivia lá no Bosque, a meia légua da vila, e logo que Chapeuzinho entrou no bosque deparou com um lobo. Ela não sabia ser ele malvado, e por isso não teve medo nenhum dele.
“Bom dia, Chapeuzinho Vermelho”, ele falou.
“Muito agradecida, seu lobo.”
“Por que andou tão cedinho, Chapeuzinho?”
“Vou à casa da avozinha.”
“O que você leva aí no avental?”
“Bolo e vinho; ontem foi o dia de fazer bolos, e assim a pobre avozinha vai ter algo de bom para fazê-la mais forte.”
“Onde vive sua avó Chapeuzinho?”
“Um quarto de légua mais adiante, no bosque; a casa dela fica embaixo dos três grandes carvalhos, as nogueiras são logo depois – por certo você sabe onde é”, replicou Chapeuzinho Vermelho.
O lobo pensou consigo mesmo: “Mas que jovenzinha tenra! Que bom bocado deve ser! – será melhor devorá-la que à velha. Tenho de ser manhoso, para poder pegar as duas.” Assim matutando, caminhou algum tempo ao lado de Chapeuzinho Vermelho
depois falou: “Veja, Chapeuzinho, as flores lindas que há por aqui – por que você não dá uma olhada em torno? Também acredito que você não está escutando como os pássaros cantam tão docemente; você anda séria como se fosse para a escola, enquanto tudo o mais aqui no bosque é alegre.”
Chapeuzinho Vermelho ergueu os olhos e quando viu os raios de sol dançando aqui e ali através da folhagem e belas flores por toda a parte, pensou: “Se eu levasse para a vovó um ramalhete fresquinho, ela também iria ficar contente. Ainda é tão cedo que poderei chegar lá a tempo.” E assim ela saiu da trilha para o bosque à procura de flores. E, sempre que apanhava uma, achava outra adiante mais bonita ainda e corria até lá, e assim foi-se aprofundando cada vez mais no bosque.
Nesse ínterim, o lobo correu direto para a casa da avó e bateu à porta.
“Quem está aí?”
“Chapeuzinho Vermelho”, respondeu o lobo. “Trazendo bolo e vinho, abra a porta.”
“Levante o trinco”, gritou a avó, “estou muito fraca e não posso sair da cama.”
O Lobo suspendeu o trinco, a porta escancarou-se e, sem dizer palavra, ele se dirigiu para a cama da velha e devorou-a. Depois, vestiu-se com as roupas e o barrete dela, deitou-se na cama e correu as cortinas.
Chapeuzinho Vermelho, entrementes, estivera correndo dum lado para o outro pegando flores e depois de ter recolhido mais do que poderia carregar lembrou-se da avó e pôs-se a caminho da casa dela.
Ficou surpresa ao encontrar aberta a porta do bangalô e ao entrar no quarto teve uma sensação estranha, que a fez dizer para si mesma. “Ó meu Deus! Como estou me sentindo esquisita hoje, e de outras vezes sempre gostei tanto de estar com a vovó.” Ela bradou: “Bom dia”, mas não recebeu resposta; foi, então, até junto da cama e abriu as cortinas. Lá estava a avó com o barrete puxado sobre o rosto e com uma aparência bastante curiosa.
“Ó vovó”,disse ela, “que orelhas enormes você tem!”
“É para ouvir você melhor, minha filha”, foi a resposta.
“Mas vovó, que mãos enormes você tem!”
“Para abraçar melhor a você.”
“Ó vovó! Mas que boca horrível de grande você tem!”
“Para comer melhor a você.”
E, mal o lobo dissera isso, saiu da cama de um salto e engoliu Chapeuzinho Vermelho. Quando o lobo acalmou o apetite, deitou-se de novo na cama, adormeceu e começou a roncar muito alto. O caçador ia passando pela casa e pensou consigo: “Como a velha está roncando “Preciso ver se ela quer alguma coisa.” Entrou, então, no quarto e, ao aproximar-se da cama, viu ali deitado o lobo. “Não é que te vim encontrar aqui, seu diabo velho!” Aí, quando ia atirar nele, lembrou-se que talvez o lobo tivesse devorado a avó e ela pudesse ser ainda salva, e por isso não disparou, mas pegou uma tesoura e começou a abrir a barriga do lobo adormecido. Depois de dar duas tesouradas viu o chapeuzinho vermelho brilhando e deu mais duas, e a garotinha pulou fora, gritando: “Puxa, como eu estava com medo! Como é escuro dentro do lobo.” Em seguida, a velha avó saiu viva também, mas mal podendo respirar. Chapeuzinho vermelho, contudo, depressa, apanhou grandes pedras, com que encheram a barriga do lobo, e quando ele acordou e tentou fugir as pedras eram tão pesadas que ele caiu de vez e morreu.
Aí os três ficaram encantados. O caçador tirou a pele do lobo e levou-a para casa; a avó comeu o bolo e tomou o vinho que Chapeuzinho trouxera, e com isso reanimou-se, mas Chapeuzinho Vermelho pensou consigo: “Enquanto viver, nuca mais deixarei sozinha a trilha para entrar no bosque, quando mamãe me tiver proibido de fazer isso.”




(Conto extraído de Le Conte populaire français (Paris, 1976), de Paul Delarue e Marie-Louise Tenèze. In: O Grande Massacre se Gatos de Robert Darnton.)
Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhado pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.
_ Para a casa de vovó – ela respondeu.
_ Por que caminhou você cai, o dos alfinetes ou o das agulhas?
_ O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.
Pam, pam.
_ Entre, querida.
_ Olá vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite.
_ Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.
A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: “menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!”
Então, o lobo disse:
Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
Onde ponho meu avental?
_ Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.
Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia:
_ Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.
Quando a menina se deitou na cama, disse:
_ Ah, vovó! Como você é peluda!
_ É para me manter mais aquecida, querida.
_ Ah, vovó! Que ombros largos você tem!
_ É para carregar melhor a lenha, querida.
_ Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!
_ É para me coçar melhor, querida.
_ Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
_ É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou.




[1] DARTON, Robert. (2001). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro., p.40
[2] Idem
[3] DARTON, Robert. (2001). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p.42
[4] Idem. p.43

[5] DARTON, Robert. (2001). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 44
[6] Idem, p. 47
[7] DARTON, Robert. (2001). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 21
[8] FROMM, Erich. “A Linguagem Esquecida: Uma Introdução ao Entendimento dos Sonhos, Contos de Fadas e Mitos”, 1983, Ed. Guanabara Koogan, p. 175.
[9] Idem
[10] DARTON, Robert. (2001). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro., p. 25
[11] Idem, p. 26
[12] Idem, p. 24
[13] DARNTON, Robert. “O Grande Massacre de Gatos”, 2001, Rio de Janeiro, Ed.Graal, p. 32

DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 47 e 48
[15] Teoria de Thomas Malthus que diz que os meios de subsistência crescem em progressão aritmética (em toneladas de alimentos), enquanto a população cresce em progressão geométrica (em milhões de pessoas).
[16] DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 48
[17] DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 51
[18] P. 51 e 52
[19] DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. P. 54
[20] P. 55
[21] DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. p. 54
[22]DARTON, Robert. (1986). O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa. 4. ed. Graal: Rio de Janeiro. P. 79
[23]ELIAS, Norbert. (1994). O Processo Civilizador: Uma História dosCostumes. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro
[24] Idem. P.179
[25] DARTON, Robert. (1986). Op cit. p.113. p. 109
[26] Id. p.113.
[27] DARTON, Robert. (1986). Op cit. p.113.
[28] Id. p. 120
[29] Id. pp.120-121.
[30] Id. p. 123.
[31] DARTON, Robert. (1986). Op cit. pp.125-126-127-128.
[32] DARTON, Robert. (1986). Op cit. p.130.
[33] Id. p.131.
[34] Id. p.131.
[35] Id. p.131.
[36] Id. p.132.
[37] DARTON, Robert. (1986). Op cit. pp.134-135.
[38] BENJAMIN, Walter. (1987). Magia e Técnica, Arte e Política. 3. ed. Brasiliense: São Paulo. p. 236.
[39] BENJAMIN, Walter. (1987). Op. Cit. p. 237.
[40] Id. p. 238.
[41] Id. p. 243.
[42] Id.p. 243.

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