sábado, fevereiro 28, 2009

Entre Vaqueiros e Fidalgos: sociedade, política e educação no Piauí -1820-1850.

A pedido de Marcelo de Souza Neto, novel doutor em História, estou dando publicidade aos comentários que apresentei em sua banca.


Parecer sobre ao texto-tese “ENTRE VAQUEIROS E FIDALGOS: Sociedade, política e educação no Piauí (1820-1850)” para a obtenção do doutorado, escrito por Marcelo de Sousa Neto, apresentado à Universidade Federal de Pernambuco em 27 de fevereiro de 2009.

Severino Vicente da Silva, Phd

Em primeiro lugar quero agradecer a Marcelo de Souza Melo, à sua orientadora, professora Tânya Brandão, o convite para que viesse a participar desse trabalho em que nós hoje estamos envolvidos, o de analisar o texto proposto por Marcelo para que seja aceito, no mundo acadêmico, como doutor em História. Agradeço à Universidade Federal de Pernambuco que, através do colegiado deste programa de pós-graduação, aceitou a indicação da orientadora. É sempre um prazer estar com os colegas, desta e de outras universidades, pondo em comum nossos pensamentos, especialmente em momentos como estes, quando temos a oportunidade de ter acesso a trabalhos inéditos, o que é ocasião para nosso aprendizado e, como sempre deve ser, uma oportunidade para questionar o saber que construímos ao longo de nossas vidas.

1.
O texto que Marcelo Sousa Neto nos apresentou quer discutir como um homem, de tradicional família piauiense, se fez padre e viveu como padre, e enquanto padre passou a maior parte de sua vida ocorreu entre simples vaqueiros e pessoas filhas de alguém, de gente de importância política porque era gente que possuía terras e cabeças de gado.
Marcelo se propõe enveredar pelo caminho da micro-história com o intuito de escrever uma biografia do padre Marcos Costa, visto como um educador nas terras do Piauí. Mas a pequena história é parte da grande e, se a pequena explica a grande história, ao mesmo tempo dela retira o esclarecimento que expõe as pequenas tessituras que formam a vida de um homem, comum ou não.
Marcelo foi buscar em Giovanni Levi, o modelo a ser seguido para alcançar o seu intento: ressaltar a personalidade de seu biografado que, como o modelo tomado por Levi, era também um sacerdote. E não foi apenas a Levi que Marcelo recorreu, mas a toda uma gama de historiadores na Nova História; mas então senti a ausência do trabalho seminal, do trabalho que é a base do fôlego dessa nova maneira de produzir biografias, que é a obra de Lucien Febvre: Lutero, um Destino. Trabalhamos, nos dias de hoje, tanto com os netos intelectuais de Lucien que, às vezes, quase temos a impressão que todas as inovações da história tem tido seu início na crise dos anos sessenta, e não percebemos que ela é, quem sabe?, o estertor de uma crise que vem se prolongando desde a Primeira Guerra Mundial do século XX! Então, pergunto, por que a ausência neste trabalho da primeira grande biografia escrita no século XX, essa biografia de Lutero, escrita por Lucien Febvre se ele foi mencionado o seu Combates pela História? Além do mais, a maneira de apresentar o biografado em um largo contexto, como é a biografia de Francisco de Assis escrita por Jacques Le Goff, tem seu início na escrita de Febvre neste trabalho já mencionado, mas também na obra em que ele dedicou a verificar a possibilidade do ateísmo de Rabelais.


2.
De maneira geral, o estudo realizado por Marcelo Souza parece apontar para a necessidade de ultrapassar estereotipos que foram criados em torno do Padre Marcos na historiografia piauiense, especialmente o de “grande educador”. Estereotipos funcionam como paradigmas explicativos para o geral, neste caso, a história do Brasil e, as diversas partes que formam o Brasil devem acomodar o que ocorre nas províncias ao que se convencionou para o geral, de maneira que, havendo a correspondências entre a explicativa geral e a particular, venha a ser mantida a unidade nacional que estava sendo desejada por aqueles que construíram o conceito de Brasil, o conceito de nação que veio a ser assumido pelos intelectuais e organizadores desse parâmetro: o de que o Brasil poderia ser uma nação sem um sistema de ensino nacional. Basta um grande educador em cada região. Na verdade esse sistema nacional só veio a realmente se organizar, poucamente, na segunda metade do século XX. Eles, os inventores da nação, pretenderam fazer uma nação sem um sistema escolar, baseado apenas na fé e na ordem a ser definida pelos que mantinham a terra prisioneira, assim como se mantinha escrava a mão de obra. Era uma cruzada na contramão das sociedades e nações modernas que se organizaram estabelecendo um sistema de ensino que abrangia a maior parte dos membros da nação. Aqui, sem um sistema nacional de ensino, só restou à historiografia enaltecer este ou aquele indivíduo que se dedicou à obra de manter escolas isoladas no imenso espaço de uma nação sem objetivos de educação democratizada. Se o Piauí tem o padre Marcos, a Paraíba tem o padre Rolim, das Cajazeiras.
Ora, definir o padre Marcos como um educador era definir a educação a partir de uma ótica senhorial, como a do botânico inglês que ficou entusiasmado por encontrar alguém com erudição capaz de acompanhar a sua conversação em lugar tão distante do centro do seu mundo.

2.1 A Gardner talvez não interessasse muito, como não católico que era, o aspecto religioso do intelectual que encontrara no Sertão. Assim, preferiu definir o padre Marcos como um “missionário do bem”. Ora, então há um missionário do mal, escondido na conceituação do cientista inglês? E qual seria este mal? Quem representaria o mal? Quem o estava missionando? Se a educação racional que ensinada pelo educador Marcos era elogiada pelo britânico, seria o padre católico aquele missionário do mal?
2.2 A fama do trabalho educacional do padre Marcos parece dever-se mais ao fato de serem tão poucos os que a tal mister se dedicavam do que mesmo em uma revolução educacional que o padre teria promovido no sertão piauiense... O trabalho educativo de uma escola gera novos trabalhos educativos, assim como uma rês bem cuidada ode gerar outra rês, como uma árvore bem cuidada pode produzir bons frutos, a escola bem sucedida produzirá frutos. Mas será que a escola do padre Marcos, a Boa Esperança, produziu frutos, ou não produziu seguidores? A escola não parece ter tido continuidade após a sua morte. O que ocorreu com a escola após a morte do padre Marcos? Esta é um incógnita que não foi desvendada no texto de Marcelo, nem dito pela historiografia hagiológica criada em torno do padre Marcos.


3.
E o trabalho do padre Marcos como padre teve sucesso?
Há um mito, baseado na experiência, de que todos os males que sofremos na educação nos foram dados pela experiência jesuítica, aliás, interrompida por ordem do ministro portuguesa que temia perder controle sobre a colônia, tão necessária para a reconstrução de Portugal após o terrível terremoto que destruiu Lisboa. É certo que as principais escolas, nos dois primeiros séculos do Império Português na América, desde São Paulo do Piratininga até São Luiz do Maranhão, passando por Olinda, Salvador e o Espírito Santo, eram escolas dos colégios jesuítas, mas não eram as únicas que podiam ser freqüentadas por estudantes brasileiros. A primeira escola teológica existente no Brasil funcionou no Convento franciscano de Olinda, também formadora de padres. E, devemos considerar, como eram poucos os espaços de formação intelectual, eram as escassas homilias ouvidas nas missas dominicais que formaram a grande ideologia católica brasileira, parece-me. Beneditinos e franciscanos, especialmente estes, é que acompanhavam bandeirantes e entradeiros, aqueles que expandiram o território em direção dos sertões; mas também faziam o acompanhamento das famílias nas vilas e povoados. Nem todos os padres que foram ordenados no período de dominação portuguesa foram formados em colégios jesuítas. Jesuítas formaram poucos, embora, quando expulsos por ordem de Pombal tinham um expressivo número de nativos como parte da Companhia. Eram mais de cem em quase quinhentos. Mas a formação do padre Marcos deve pouco aos jesuítas, uma vez que, como aluno da primeira turma do seminário de Olinda, teve como professores padres seculares ou de outra ordem; quando de sua formação os jesuítas não atuavam mais no império português, na verdade, estavam sendo extintos pelo pontificado romano, encurralado pelas potências absolutistas que passaram a controlar a religião desde o terremoto da Reforma. No caso português, a Igreja ainda sofreu dois terremotos: o de Lisboa e o Marques de Pombal, ou seja, o terremoto iluminista. Entretanto o Iluminismo português era infenso à liberdade.

3.1 Mas o iluminismo que o padre Marcos recebeu foi o iluminismo de Coimbra, controlado pelo Império, o Iluminismo de pouca potência, aquele traduzido por Verney, aprovado e apoiado pelo Marques. Assim é que se pode explicar, penso, a pouca adesão do padre Marcos aos ideais revolucionários de seus professores de Olinda, com os quais pouco conviveu, pois que por ali passou muito rapidamente, aproveitando as bolsas que o Império oferecia aos jovens, pensando tê-los como parte do arcabouço burocrático, como Marcelo bem expõe em seu texto. Essa educação recebida em Coimbra explica melhor as relações entre as posturas dos piauienses com os movimentos independentistas que estavam ocorrendo.
Tendo passado pouco tempo em Olinda, Marcos parece ter sido o maior sucesso de Azeredo Coutinho. Padre Marcos não era um revolucionário, mas um educador, um civilizador, alguém que está mais direcionado para a manutenção da ordem do que para a sua superação. Não creio que o bispo Azeredo Coutinho, esse servidor serviçal do império português, tenha ficado alegre com os resultados da atuação educativa do Seminário nas suas primeiras turmas, as turmas que fizeram os movimentos de 1817 e 1824. Essas turmas que se formaram em Olinda foram mais tocados pelo iluminismo francês que o piauiense que terminou seu curso na Europa. Os padres professores do Seminário de Olinda possuíam uma perspectiva diferente da dos professores de Coimbra, que não eram os jesuítas, mas eram padres do Oratório que, no Recife, possuíam uma escola concorrente ao Seminário de Olinda, funcionando no Convento da Madre de Deus, para onde se mudou o seminarista José Maria Ibiapina, mais tarde Padre Mestre Ibiapina, descontente da pouca espiritualidade que experimentava naquela instituição.
Mas a obra do padre Marcos, enquanto sacerdote é muito pequena, quase restrita aos limites da sua propriedade, onde ficava a Escola Boa Esperança, de onde se recusava a sair fisicamente, mas de onde emitia influência sobre a vida política da Província.

4.
Talvez o mais interessante da vida do padre Marcos é ter sido um dos principais políticos do Piauí, tanto pelo tempo de sua vida, quanto pelos postos que exerceu, às vezes sem tomar posse, mas por sua influência sobre seus pupilos e parentes. Entretanto, a sua grande luta, que foi uma luta política de Estado, mas também de política eclesiástica, não foi bem sucedida. Trata-se do esforço realizado para a criação da diocese do Piauí, separando-a do Maranhão, o que jamais foi aceito pelos ordinários maranhenses. Apenas com a proclamação da República, muito tempo após a morte do padre Marcos é que foi criada a diocese do Piauí, mas então tal ereção ocorreu em uma nova situação vivida na região e no mundo, e atendeu mais aos interesses da Sé Romana do que os motivos apresentados pelo padre Marcos, que eram os interesses das famílias tradicionais da região.

5.
Quero ressaltar o que foi feito na conclusão do estudo de Marcelo. Achei interessante que ele tenha posto maior relevância nas questões da teoria da história que em tentar tirar maiores conseqüências da atuação do pedagogo, do sacerdote e mesmo do político Marcos Souza. Aprofundar essas conseqüências levaria a uma crítica mais aberta e acentuada à historiografia piauiense tradicional, que tem uma postura hagiográfica em relação ao educador que ajudou a manutenção de uma oligarquia no poder duratnre o Primeiro Reinado.
A escolha de ter um sacerdote educador na família seria um meio para influenciar politicamente na Província e no Império. Talvez o padre Marcos seja mais importante para o historiador como paradigma, como modelo para entender tão grande quantidade de jovens cedidos pelas famílias tradicionais ao sacerdócio católico. Muitos deles foram grandes administradores como é o caso do Padre José Martiniano de Alencar e outros. Quantos padres da família Cavalcanti, ou dela aparentados, auxiliaram, desde a sacristia, o fortalecimento da oligarquia familiar, ainda que não tivessem ocupado cargos maiores? Não foram poucos os conflitos, no período do Império Brasileiro, entre os Cônegos dos Cabidos episcopais com os bispos indicados pelo imperador. Os cônegos das catedrais temiam que um bispos estranho aos interesses locais pusesse a perder as relações de poder então vigentes.
Acho que as reflexões que Marcelo nos aponta como possíveis conclusões podem abrir caminhos outros, outros pensamentos, para entender, de outra maneira, a história da Igreja Católica no Brasil na sua relação com as classes dominantes, uma relação de convivência e conivência até o passado recente. Pode-se definir tais relacionamentos como sendo de negociação em torno de interesses comuns na produção de uma sociedade. As relações eram de poucos conflitos no período imperial e mesmo nas primeiras repúblicas.
Conflitos entre a Igreja e o Estado ficaram mais comuns no período final do século XX. Eram tempos em que apareceram padres e bispos nem sempre ligados às famílias tradicionais, mas originários de imigrantes (Arns, Lorscheider), filhos de pequenos proprietários, camponeses (Távora), operários, filhos de professores (Hélder Câmara) e funcionários públicos, etc. Naqueles anos foram apresentados, em estudos, padres como Ibiapina, Cícero, beatos diversos, et alli que, por suas práticas puseram em cheque o poder, tanto os poderes civis, quanto o poder eclesiástico. Esses tempos mudaram e com ele o eixo das pesquisas. Vejo que o seu estudo sobre o padre Marcos, de rica parentela no Piauí, uma possibilidade de entender esses nossos tempos e, ao mesmo tempo, abrir caminhos para entender a presença de tantos padres educadores ainda não estudados, especialmente no início da República, quando começou uma prática de haver Escolas paroquiais, quase todas utilizando o método Lancarster, já posto em prática pelo nosso político, padre e educador do Piauí.

Um comentário:

Geraldo Pereira disse...

Biu Vicente: Dessa vez você se superou. Fez um estudo para ser lido na defesa de tese de um doutorando, doutorando e ex-padre também, que ultrapassa o apenas histórico e vai perpassar aspectos filosóficos, teológicos e até sociológicos das questões. Li uma parte e por ser longo vou imprimir, para uma leitura mais reflexiva, na varanda de casa aqui e agora ou mais tarde, quando o sol raiar no horizonte e a manhã for parida das entranhas da noite.
Geraldo Pereira - 4h39 do dia 1º de março de 2009