quarta-feira, dezembro 20, 2006

Porque ter uma ideologia

Li esta coluna de Pedro Porfírio na Tribuna da Imprensa,RJ, neste dia, e não resisti à idéia de colá-la aqui.

Porque é pecado falar em ideologia
Pedro Porfírio - 20/12/2006 Tribuna da Imprensa

"Ideologia, eu quero uma para viver." Cazuza
A população dos Estados Unidos é hoje de 300 milhões de habitantes, equivalente a 5% da população do mundo. Seu PIB - Produto Interno Bruto - é de 12 trilhões, 360 bilhões de dólares. Sua renda per capita anual é de 41 mil, 399 dólares. Para você ter uma idéia, com 188 milhões de habitantes, o Brasil tem um PIB de 1 trilhão 577 bilhões e uma renda per capita de 8 mil e 49 dólares.
Com esses 5% de habitantes da Terra e com essa pujança econômica, os Estados Unidos consomem 25% das drogas refinadas no mundo, conforme admitiu o então presidente Bill Clinton. E têm 25% da população carcerária mundial, com um total de 7 milhões de presos: um em cada 32 adultos estava atrás das grades ou em liberdade condicional ao final de 2005, segundo relatório do Departamento de Justiça, divulgado no último dia 30 de novembro.
Como explicar isso? Nos Estados Unidos, há um completo desprezo por ideologias, valores éticos, morais e até religiosos. A igreja católica é campeã de manchetes sobre pedofilia. Praticamente todo o patrimônio do arcebispado de Boston está empenhado para pagar indenizações às vítimas dos abusos sexuais dos seus prelados.
Onde o dinheiro é tudo
Nos Estados Unidos só se pensa em dinheiro. Lá cada um vale pelo que tem. E tudo o que cada norte-americano deseja é ter mais, ser mais, galgar novos degraus. Porque essa é a condição frenética de uma civilização fundada no princípio do sucesso pessoal: a civilização capitalista ocidental. Não estou usando o exemplo norte-americano por pirraça.
Estou falando do país mais rico do universo, que perdeu totalmente o sentido da vida. Porque desde sua independência, em 1776, viveu a eterna corrida do ouro, com a qual se apoderou da metade do México, comprou a Louisiana, o Alasca, e transformou Porto Rico em "estado associado".
Com esse desiderato, o país de Abraão Lincoln sempre esteve vacinado contra ideologias ou até mesmo movimentos operários consistentes. Os sindicatos são verdadeiras empresas e parte deles, como o maior de todos - o de transportes -, tem o sangue da máfia em seu DNA.
Lá, os grandes fundos de pensões são geridos pelas milionárias máquinas sindicais. Esse, aliás, foi o elo que aproximou Lula da AFL-CIO (a confederação operária) através de Stanley Gacek, um íntimo da corte petista.
Não há elementos internos de drásticos conflitos sociais. Tudo se resolve com as fascinantes novidades de uma sociedade de consumo a caminho da robotização. As megametrópoles impuseram o "american way of life" como sonho de todas as gerações e em todos os rincões.
A norte-americana é uma sociedade engessada politicamente. Embora existam dezenas de partidos, há uma deliberada polarização entre Republicanos e Democratas, surgidos da mesma cepa. O Partido Democrata foi fundado por Andrew Jackson em 1836, como dissidência do Republicano, fundado por Thomas Jefferson, em 1793.
Não há lideranças juvenis ou universitárias. Até mesmo o racismo, que pontificou até os anos 60, encontrou um calmante, a partir do momento em que a sociedade afluente descobriu um novo filão: o emigrante da América Latina. O racismo é uma ferramenta para manter trabalhadores de segunda classe, com remuneração bem mais baixa.
Exploração dos imigrantes
Com os latino-americanos o jogo é mais fácil. Há hoje oficialmente 40 milhões só de hispânicos, isso sem falar nos clandestinos. Em qualquer situação, estes passaram a suportar os trabalhos mais pesados com remuneração correspondente a um terço do que se paga a um norte-americano.
Apesar dessa situação escrava, há milhares de latinos arriscando a vida para ir matar a fome por lá. Segundo o Hispanic Inmigration Trends 2005, publicado pelo Pew Hispanic Center, os retirantes do México encabeçam essa fuga. Aos Estados Unidos chegam cada ano 400.000 mexicanos e um milhão vê frustrado sua tentativa de passar pelos controles fronteiriços.
Nessa sociedade não existem valores humanos, éticos, morais ou religiosos. O patriotismo se confunde com sanha imperialista. Ser patriota lá é seguir o lema "Deus salve a América e a ninguém mais", tão bem ironizado pelo diretor e ator negro Chris Rock em seu filme "Um pobretão na Casa Branca" ("Head of state").
Não há ideologia. Nem mesmo se pode falar de uma ideologia norte-americana. E essa rejeição de uma ideologia é a rejeição de valores, de compromissos essenciais. E essa idéia de que ideologia é coisa de comunista, que cheira a mofo, é que torna a nação norte-americana um grande vulcão. De tanto cada um cuidar de si, de tanto o país depender da soma de sucessos pontuais muitas vezes conflitantes, e como nem lá todos podem subir, surgem os traumas existenciais, a busca da droga e de outras compensações.
A invasão do Iraque é a conseqüência dessa civilização argentária. Mentiram para o povo, dizendo que Sadam Hussein desenvolvia armas bacteriológicas. E facilitaram o 11 de setembro de 2001, como provou Michael Moore, para avançar sobre o petróleo alheio e beneficiar descaradamente os complexos empresariais que financiaram a campanha de Bush.
É verdade que hoje só 17% dos norte-americanos aprovam o genocídio promovido por seu governo no Iraque. Mas, como já disse, essa reação se deve muito mais aos 3.300 soldados mortos lá do que à matança de meio milhão de iraquianos. Porque a sociedade americana foi até 11 de setembro a sociedade da vitória. E jamais poderia imaginar detritos de guerra em seu território. Tanto que para muitos analistas e estudiosos, como Jessie Miligan, do "Fort Worth Star-Telegram", aquele foi o "último dia comum na vida do povo norte-americano".
Eu bem que poderia estar falando da pauta de que a nossa imprensa se farta. Provavelmente, é isso que você gostaria que eu falasse. Mas prefiro ir onde ninguém vai. Penso no futuro dos meus filhos e de todos esses adolescentes sem futuro.
Penso mais: vejo a podridão transformada num grande pântano, manchando quem menos se espera, em todos os ramos da vida, tudo porque é pecado falar em ideologia.


Assino com prazer essas palavras.

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