terça-feira, novembro 13, 2007

Relações Escolas e Ponto de Cultura -4

Este é o quarto bloco, uma continuação da palestra com o título acima.

7. lugar de mestre é no Ponto de Cultura
Quando o dono e presidente do Maracatu Estrela de Ouro, lá da cidade de Aliança,na Região da Mata Norte de Pernambuco convidou Afonso Oliveira e, através dele a mim, para entrar nessa aventura de Ponto de Cultura, com um edital do MINC na mão, aprendi que o Ministério da Cultura pretendia criar/apoiar pontos de cultura nas diversas regiões do Brasil. Esses seriam locais de encontro e disseminação da cultura que é produzida pelas pessoas e comunidade em todo o território nacional. O Ponto de Cultura Estrela de Ouro, foi criado logo no primeiro edital, entretanto, ele já existia antes do meu nascimento, do nascimento de Lourenço, do nascimento de Afonso Oliveira e do nascimento do ministro Gil. Isso ficou claro para mim, que nasci naquela região, no meu primeiro contato com as pessoas e o lugar onde está situado o Ponto de Cultura Estrela de Ouro, imprensado ente uma rodovia e canaviais. Minha família havia deixado aquela região nos anos cinqüenta para que eu e meus irmãos pudéssemos ser pessoas educadas, havíamos de ser conduzidos, ou reduzidos, ao mundo das letras. Como em um verso de Paulinho da Viola “havia eu de ser doutor”. Mas agora eu estava ali, no meio do canavial conversando com os mestres de Maracatu, Caboclo, Cavalo Marinho, Coco, bordador de golas, pai de Santo, todos analfabetos, cortadores de cana, antigos cambiteiros e mestres de tropas. Estava eu no meio de um lugar que é guardião de costumes, crenças, danças, desenhos, movimentos corpóreos, cheiros que não deveriam mais existir, segundo o que aprendi nas escolas.
Uma vez eu li as letras de um famoso estudioso da cultura popular – um estudioso da cultura popular quase nunca é parte do grupo criador da cultura, ele não pode ser definido como um agente daquela cultura, pois é um observador crítico que verifica o que pode ser salvo, recuperado ou reduzido ao mundo da cultura dele: o estudioso da cultura popular. Não apenas os jesuítas reduziam os índios aos seus colégios, outros fazem isso hodiernamente. As letras daquele estudioso descreviam o seu deslumbramento quando presenciara, na cidade de Tracunhaém, a chegada de um Maracatu de Baque Solto, os movimentos que os caboclos realizavam para conquistar as ruas por onde passavam e o povo para admirá-lo. Nas suas letras havia algo mais ou menos assim: é inacreditável que tenha sido possível, no meio de tanta miséria ter surgido algo tão bonito, tão cheio de cores e alegria!
Quando li pela primeira vez esse texto ao qual me refiro, tive a sensação que ele quisesse dizer algo assim: “Puxa vida, faz 400 anos que a gente maltrata esse povo, quatrocentos anos que o exploramos, que o colocamos para trabalhar praticamente todos os minutos de seus dias, que o forçamos a cortar 3 toneladas de cana cada dia, que não o deixamos que tenha uma boa alimentação, uma residência decente e, assim, de repente, ele me aparece com essa beleza plástica, esse andamento controlado dos seus corpos, arrancando sons dos chocalhos que penduramos nos pescoços dos bois como cautela contra os ladrões; como é possível eles estejam ainda vivos, e criativos!” Pode ser que eu esteja fazendo uma análise equivocada do discurso, e esteja extrapolando a intenção daquele autor, mas talvez a grandeza de sua obra seja a de reduzir a criatividade daquele povo à sua própria. Reduzir o povo à sua imagem é o que se procura fazer na escola. Reduzir o outro a si é criar estratégias para que o outro perca as suas referências e passe a ver-se como alo diferente, algo estranho, por não ser parecido com o modelo que lhe é ofertado. De maneira geral a escola tem feito este trabalho com alguma eficiência: após alguns anos na escola, as pessoas são diferentes, têm gostos diferentes, heróis, e costumes que jamais imaginaram. Nesse aspecto a escola e os Pontos de Cultura estão em campos opostos. Vejamos alguns exemplos no campo religioso.
1. alguns Pontos de Cultura, quase todos, estão impregnados pelo catolicismo popular, pela Umbanda, pelo Catimbó, pelo Xangô ou Candomblé; a escola diz que isso é folclore;
2. enquanto em alguns Pontos de Cultura as pessoas conversam sobre Comadre Fulôzinha, Saci Pererê, Boi-ta-tá, na escola se diz que isso é invencionice do povo, entretanto, cada vez mais as escolas falam de bruxas e duendes, tradições dos povos galo-bretões;
3. quando nos envolvemos no programa Agente Cultura Viva, e recebemos das escolas locais, esses jovens, provenientes de escolas de bairros mais urbanos, recusaram chamar de mestre aquele que cuidava do artesanato e do culto no espaço do Ponto de Cultura, porque ele era catimbozeiro. Os jovens haviam sido ensinados, nas famílais, escolas e na sociedade geral, a não respeitarem o Catimbó e a Jurema como religião;
4. por outro lado, percebemos que poucos eram os jovens que aprenderam, na escola a técnica da leitura e da escrita, o que demonstra que, embora a escola tivesse sido eficiente para “desconstruir” o saber popular, havia sido ineficiente na sua tarefa básica;
5. a escola tem se mostrado eficiente em fazer os jovem esquecer o seu nincho cultural de origem, afastando-os de suas raízes, mas tem ela sido ineficiente em desenvolver estratégias de integração dos jovens das comunidades pobres na grande sociedade;
6. notamos que os jovens provenientes das escolas não foram desinibidos para expor as suas idéias, falar publicamente, as escolas deveriam desenvolver essa habilidade tão necessária na sociedade moderna;


8. concluindo
Quando olhamos as formas de atuação metodológica das escolas comparando-as com as praticadas nos Pontos de Cultura, verificamos que há uma tendência da utilização de retângulos pedagógicos nas escolas e círculos pedagógicos nos Pontos. È muito comum as conversas e as atividades dos Pontos de Cultura serem realizadas com as pessoas formando um círculo ou um semicírculo. Talvez essa forma de reunião torne mais leve a comunicação, pois parece não indicar qualquer ascendência de pessoa ou grupo de pessoas sobre os demais. Em um círculo as pessoas têm condições de se verem mutuamente enquanto se falam, e não apenas escutam quem fala, mas vêem quem fala e como fala aquele que está falando. A comunicação se faz de maneira mais intensa e completa. A escola, por sua vez, está organizada de maneira rígida, conformando o grupo às paredes dos ambiente, pondo uma pessoa defronte às demais, estas postas um atrás da outra, de maneira que elas não pssoam comunicar-se entre si, sendo obrigadas a interagir apenas com aquela pessoa que está diante dela. O esforço para ver outras pessoas é grande: é necessário um esforço para o deslocamento do corpo, na sua totalidade ou em parte dele, como o torcer o dorso ou a cabela. Mesmo este esforço estará sob suspeita de indisciplina, facilmente flagrado pelo “líder-professor” posto na frente do grupo. O retângulo como formação de disciplina é de origem militar, muito utilizado pelas legiões romanas e pelo exército brit^naico, organizado no século XVII e XVIII, época em que a escola do homem moderno, o homem disciplinado, que não se move exceto na direção que lhe for indicada.
As visitas dos Griôs de Chã de Camará às escolas públicas de Aliança estão nos trazendo informações interessantes. Quando o Griô Aprendiz vai a uma escola para verificar se ela está interessada na visita dos Griôs, ele diz os Mestres do Ponto de Cultura querem apresentar uma oficina na escola; mas procura deixar claro que não se pretende tomar o lugar do professor, nem se deseja que seja posto na “grade curricular”; o que eles vão apresentar, por outro lado esclarece que não é uma simples atividade de diversão. Aqui eu desejo distinguir a diversão e recreação. Diversão é aquilo de tira a sua atenção de um ponto para outro, que distrai e procura retirar tensões para que haja certo descanso e recomposição de forças; Re- crear – ação, a ação de criar de novo, fazer mais vez o que já havia sido feito para que se sinta a alegria.
Na chamada “oficina” se faz, é um pouco de propaganda do trabalho, da arte que esses mestres fazem no Ponto de Cultura. Eles se apresentam não enquanto folgazões, aqueles que brincam, divertem, mas eles são artstas, dizem que estão “apresentando a cultura para que a cultura não seja esquecida”. E isso é um dado, uma expressão interessante: um homem analfabeto está dizendo na escola, local de transmissão da cultura, que ele está apresentando cultura “para que a cultura não seja esquecida”. De certa forma estão dizendo que a escola não tem cultura.
Na visão “moderna” um analfabeto é um homem sem cultura, o mundo moderno diz que cultura se aprende na escola, mas o Griô aprendiz está afirmando que está apresentando a cultura; estão transmitindo o conhecimento de coisas que eles sabem e que não aprenderam na escola, e querem que os estudantes daquela escola, que não ensina a cultura, passem a conhecer a cultura, passem a brincar com ela, pois só assim a cultura não será esquecida. Os Pontos de Cultura e seus mestres querem recuperar a escola como Ponto de sua Cultura, ou seja lugar de criação cultural e não de simples transmissão da criação exterior ao povo brasileiro. Aqui não é não é uma questão xenófoba, mas é, inclusive, a aplicação de caminhos que outros povos utilizaram para se firmar e afirmar-se diante dos demais. Foi a partir do reconhecimento das tradições de seus antepassados que as nações modernas se afirmaram como nações e passaram a ser vistas como tal, e respeitosamente pelas outras nações, pelas outras culturas. Os ingleses se afirmaram quando suas elites deixaram de falar francês e passaram a adotar o linguajar dos comuns; os alemães cultos deixaram de escrever em inglês e ainda hoje estão criando, orgulhosamente, novas palavras alemãs, sem os escrúpulos que nós temos com os neologismos. Talvez, na medida em que ocorra a aproximação entre essas duas instituições, e juntarmos mais uma vez a educação à cultura, a gente possa retomar a criação de nós mesmos. E superar a repetição, nem sempre divertida, de educarmo-nos na e com a cultura dos outros.

Nenhum comentário: